No Fim do Inverno - Capítulo 07
Morde e Assopra.
‘Por que ele está sorrindo?’
Os olhos verdes de Eunice tremeram levemente. Aquele sorriso frio fez um calafrio percorrer sua espinha.
‘O que ele está pensando ao sorrir assim? Vai zombar de mim? Mandar eu dançar como um bobo da corte? E se ele me assediar bem aqui, ao ar livre?’
Ela estava sozinha. Não havia ninguém a quem pudesse pedir ajuda. Se o homem ordenasse algo, não teria escolha a não ser obedecer.
A imagem dele quase quebrando o crânio de seu subordinado passou diante de seus olhos. Apesar daquela brutalidade, o ruivo não disse uma única palavra. Um simples olhar de Johannes foi suficiente para fazê-lo se afastar, submisso.
Talvez essa fosse a postura que Eunice teria que adotar de agora em diante.
— Ahem. Você já acampou antes?
— …!
Uma voz surpreendentemente gentil cortou seus pensamentos, a pegando completamente desprevenida. Eunice piscou lentamente, como se tivesse sido pega de surpresa.
— Acampamos durante todo o caminho até aqui.
— Mas antes disso?
— Não exatamente. Nunca tive motivo para isso…
— Entendo.
— Hum!
O silêncio constrangedor se instalou rapidamente.
Eunice mexeu ansiosamente nos dedos. Sentia que devia dizer algo, qualquer coisa, mas nenhum assunto vinha à mente. Ela não conhecia seus interesses. Não tinham nada em comum.
Sobre o que as pessoas normalmente falam quando se conhecem? Meteorologia? Sim, clima é seguro.
Ela podia perguntar sobre o clima de Nordisch. Se realmente parecia inverno o ano todo, ou quão frio ficava.
Eunice organizou os pensamentos e desviou o olhar do fogo para Johannes. No instante em que seus olhos se encontraram, seu plano desmoronou.
Ela abriu a boca, fechou novamente, olhou para o fogo, viu ele coçar a cabeça de maneira desajeitada e pigarrear.
Tudo nele contradiz os rumores vindos do Sul.
Aquele monstro cruel não parecia se encaixar.
Havia algo estranhamente… humano nele.
— Eunice.
Era como se o homem estivesse tentando se aproximar.
— Tudo bem se eu te chamar assim?
Seu coração acelerou ao ouvir sua doce voz. Quase em transe, ela assentiu.
— Claro.
Ela estava imaginando coisas? Achou ter visto um leve sorriso nos olhos azuis-gélidos dele. Estranhamente, sua tensão começou a se dissipar.
Crepitar.
As chamas da fogueira dançavam em seus ouvidos. A escuridão se estendia pela terra vasta, cobrindo o solo como um manto.
Outro silêncio caiu, mas desta vez, não parecia desconfortável. Era um silêncio compartilhado. Não desesperado por conversa, apenas… presente.
Mais uma vez, Johannes falou primeiro.
— Você ouviu o que eu disse ao Lowell, mais cedo?
Ele a observava atentamente, procurando alguma reação. Era algo que ela não deveria ter ouvido? Então o ajudante ruivo se chamava Lowell.
Eunice se lembrou de como havia vagado antes, procurando por Johannes. Estava com medo, mas ele logo seria seu marido, e ela tentara se aproximar.
Em uma terra estrangeira onde não conhecia ninguém, Johannes era sua única tábua de salvação.
— Não, não ouvi nada.
Ela balançou a cabeça suavemente.
— Eu só vi Vossa Majestade bater na cabeça do Lowell. Na verdade, eu estava indo buscar ajuda, um curandeiro ou um mago.
— O quê?
— Pensei que o crânio dele pudesse ter rachado. O som foi como uma melancia se partindo…
— …
— Muito alto.
— …
Johannes não disse nada.
A boca de Eunice ficou seca. Será que disse algo errado de novo? Ele havia mudado de atitude mais cedo só porque ela se curvou demais… O que foi agora?
Homens difíceis são tão… complicados. Ela se sentia como se andasse numa corda bamba.
— Hahahahah!
Então veio uma gargalhada suave.
Eunice piscou, confusa. Tinha medo que ele se irritasse, mas ele riu. Isso… foi tão engraçado assim?
Ela não sabia como reagir. Ainda estava atordoada quando Johannes explodiu em gargalhadas, mostrando os dentes.
— Haha! Isso foi hilário.
— …
Ela não estava tentando ser engraçada…
— Desculpe. Não foi minha intenção te assustar.
— … Tudo bem.
E, assim, Eunice sentiu como se tivesse levado um golpe emocional. ‘Desculpa?’ Ela não estava acostumada a isso. Passou a vida inteira pedindo desculpas, mas ninguém jamais havia se desculpado com ela. Pelo menos, não de verdade.
Essas palavras inesperadas quase a fizeram lacrimejar.
Para esconder sua expressão boba, ela voltou-se para o fogo. Felizmente, Johannes parecia muito ocupado rindo para notar sua reação.
— Lowell está bem. Não se preocupe.
— É difícil acreditar nisso.
Ela manteve os olhos fixos à frente, tentando se recompor. O calor da fogueira ajudou a acalmar seus nervos.
— Sério. Ele já está acostumado, foi treinado desde criança.
— Ele apanha há tanto tempo assim?
— Ele sempre fala coisas que merecem um soco.
— O que ele disse desta vez?
Curiosa, Eunice virou a cabeça. No mesmo instante, seus olhos se encontraram, ele já a observava.
‘Por que ele me olha assim…?’
A luz do fogo cintilava sobre seus traços bonitos, lançando um tom avermelhado. Seu cabelo prateado como a luz da lua e os olhos azul-gelo… agora pareciam apenas… solitários.
Ela não sabia por que sentia isso.
— Ele disse algo.
— …
Será que tocou num ponto sensível? Tentou consertar imediatamente.
— Você não precisa me contar. Eu não devia ter perguntado.
— Eu não ia contar mesmo. Mas não foi uma pergunta ruim.
— … Que resposta estranha.
— Ainda assim, é uma resposta.
— …
Sem palavras, Eunice ficou em silêncio novamente.
Ele está jogando com as palavras? Vai voltar a ficar frio comigo? Ela procurava desesperadamente um novo assunto.
Então, TEC!
— Ai!
Eunice olhou incrédula. Johannes tinha dado um peteleco em sua testa. Forte.
Realmente doeu. Mas ele só sorriu, brincalhão.
— Dava para ouvir seu cérebro trabalhando daqui.
— Isso doeu!
— … Eu peguei leve.
Claro, “leve” era relativo. Comparado ao golpe que ele deu em Lowell, foi como uma pena. Ele mal a tocou. Mas seus dedos calejados fizeram arder.
Seus olhos se encheram de um ressentimento involuntário.
Vendo isso, Johannes engoliu seco.
‘Não era isso que eu queria fazer.’
Ele coçou a cabeça, então passou o polegar gentilmente no ponto onde a havia atingido.
— Deixa eu ver.
Morde e Assopra.
— Está um pouco vermelho. Sua pele é muito delicada, hein.
— …
Eunice prendeu a respiração. Tinha doído, mas agora… seu toque era estranhamente reconfortante.
Aquelas mãos, que com certeza já se mancharam de sangue, agora pareciam quentes e seguras. Depois de tanto se preocupar sobre como agradar esse monstro cruel, Johannes havia diminuído a distância entre eles com tanta facilidade.
— Vou ser mais cuidadoso de agora em diante.
Seu sorriso, se curvando ao redor dos olhos, era deslumbrante.
Por um momento, a mente de Eunice ficou em branco. Quer ele quisesse ou não, seu charme certamente teve grande parte na unificação de Nordisch.
Enquanto pensava nisso, o polegar do homem deslizou suavemente de sua testa até a têmpora, bochecha e queixo. A sensação desconhecida fez suas pálpebras tremularem.
“Ser mais cuidado” quer dizer me tocar com mais gentileza? Ou eu que sou estranha por pensar em uma cama no meio do nada? Mas… não é como se isso não fosse acontecer em breve…
Antes que pudesse entrar em pânico, a mão de Johannes se afastou de sua pele. Ela seguiu seu olhar.
Um cavaleiro se aproximava, com duas tigelas nas mãos.
— Vossa Majestade, o ensopado especial do Sir Michael.
— Tem um cheiro decente.
Johannes pegou as duas tigelas e entregou uma a Eunice.
— Obrigada.
— Não sei se vai gostar. Comida de acampamento é simples, mas as coisas serão melhores quando chegarmos a Berzan.
Mesmo suas palavras rudes tinham um toque de gentileza.
Num momento, ele parecia aterrorizante, em seguida, sorria lindamente, no outro, golpeava alguém sem piedade, logo depois, falava com delicadeza. Deu um peteleco sem aviso, e agora, ofereci comida quente.
Ele era totalmente imprevisível.
Mas, afinal, eles só haviam se conhecido naquele dia. Os rumores sobre sua crueldade não eram infundados — ela já teve um vislumbre disso.
Enquanto dava uma colherada no ensopado, Eunice tentou montar o quebra-cabeça em sua mente. Era supostamente “especial”, mas não era nada extravagante
Porém, considerando que estavam no meio da Terra da Morte, já era impressionante.
Se concentrou no sabor desconhecido do tempero e então levantou a cabeça.
Acima da luz da fogueira, estendia-se um vasto céu noturno infinito. Tão distante e imenso que era quase assustador, mas, ao mesmo tempo, de tirar o fôlego, com estrelas fluindo como um rio.
Continua…
Tradução: Elisa Erzet