O Gatinho que Chora Todas as Noites - Capítulo 04
Foi ali que tudo começou, sua obsessão por cabelos prateados e olhos cinzentos.
Nessas noites de insônia, Helion evocava a imagem dela em sua mente. A criança de cabelos prateados, brilhando sob o luar, foi gradualmente se transformando à medida que a noite avançava, na figura de uma mulher madura.
Sua imaginação ganha cor e vida. Olhos puxados, hipnotizantes em sua curvatura. Lábios carmesim que sussurravam seu nome.
Noite após noite, levava para sua cama mulheres que se assemelhavam a ela. Mas, ao contrário daquela que o excitava com meros pensamentos, nenhuma dessas substitutas conseguia provocá-lo.
Aquilo, portanto, era inédito, ele estava excitado por uma mulher de carne e osso bem diante de seus olhos.
— Eu ia perguntar o nome dela.
Naquele dia, sua salvadora sem nome desapareceu exatamente assim.
E mais uma vez, aconteceu o mesmo. A mulher que havia despertado seu interesse escapou como um gato ágil, sem lhe dar a menor chance de alcançá-la.
— Bem… ainda terei muitas oportunidades.
Helion deixou um sorriso preguiçoso curvar seus lábios. Tudo bem. Talvez tivesse perdido sua salvadora, mas esta mulher seria diferente.
Diferente daquela cidadã sem nome de uma nação inimiga, esta era uma cavaleira do Império. Se não descobrisse seu nome hoje, bastaria perguntar outra ocasião.
🌸🌸🌸
No Império, ser uma cavaleira significava enfrentar um tipo peculiar de discriminação.
Katie havia crescido no Reino de Chandra, onde os papéis de gênero eram equilibrados. Claro, havia pequenas diferenças dependendo da tribo, algumas matriarcais, outras patriarcais, mas esses costumes raramente ultrapassavam os limites de suas próprias comunidades.
O Império, por sua vez, pregava a igualdade de gênero em teoria. Homens ou mulheres, todos os cavaleiros passavam pelo mesmo treinamento e cumpriam as mesmas funções dentro de suas atribuições
Mas, na prática, o tratamento estava longe de ser igual. Não fazia sentido, treinavam juntos, realizavam as mesmas tarefas, e ainda assim a discriminação persistia.
Funcionava mais ou menos assim:
— Katie, pegue uma toalha para mim.
— Há vários outros cavaleiros de patente média aqui além de mim.
— Mas você é a única mulher por perto agora.
Os cavaleiros veteranos usavam Katie para satisfazer seu desejo de serem servidos por uma mulher bonita. Era esperado que um cavaleiro de patente como a dela fizesse recados para um superior, mas o fato de ser sempre Katie a encarregada era, inegavelmente, um problema.
Na verdade, a exploração só piorou depois que aquele maldito Segundo Príncipe começou a assediá-la.
— O quê? Agora que atraiu a atenção de Sua Alteza, se acha nobre demais para nos servir? É isso?
— Não é isso…
— Tsc. E por que está me encarando assim?
Maldito Damian. Aquele desgraçado era sempre a origem dos problemas.
Depois que um príncipe passou a tratá-la abertamente como uma prostituta, os demais seguiram o exemplo sem hesitar. Mesmo aqueles que sabiam do assédio se calaram.
Covardes. Eram rápidos para lançar olhares lascivos e fazer insinuações, mas no instante em que as consequências apareciam se esquivavam de qualquer responsabilidade.
— Eu perguntei, Katie. Por que está me olhando assim?
Arnin era um dos principais responsáveis por atormentá-la. Com seus cabelos vermelhos como fogo e o rosto salpicado de sardas, sempre corava de excitação sempre que Katie, a contragosto, obedecia a uma de suas ordens.
Ugh. Só de pensar naquele rosto, seu estômago embrulhava. Os olhos já puxados de Katie se estreitaram ainda mais, formando triângulos afiados
— Então como devo olhar para você? Devo esculpi-los em quadrados? Ou quer que eu os entalhe em formato de estrela?
— Você—! Só porque Sua Alteza está interessado em você, acha que agora é intocável?
O mesmo roteiro de sempre. No momento em que Katie demonstrava o menor sinal de desafio, Arnin arregalava os olhos e arrastava Damian para a conversa.
Em qualquer outro dia, ela já teria abaixado a cabeça e murmurado: ‘Não é isso.’ Reagir nunca lhe trazia benefício algum.
Mas hoje, Katie não estava com paciência. Como todos os meses, a culpa era dos hormônios. Seu cio estava se aproximando.
Aquele era apenas seu segundo ciclo, o cio só começava quando uma beastkin atingia a idade adulta.
Sozinha em uma terra estrangeira, sem pais ou amigos que pudessem orientá-la, Katie não sabia como controlar os impulsos muito menos como aliviá-los.
— Deveria ter sido cortesã, não cavaleira. Combina mais com você.
As palavras murmuradas de Arnin foram a gota d’água. Ela arrancou a luva e a arremessou. O couro branco manchado de terra atingiu sua bochecha com um estalo seco antes de cair no chão.
— … O-oqu—?
Mesmo depois de ser atingido, Arnin permaneceu parado, piscando, com o rosto vazio, como se não entendesse o que acabara de acontecer.
— O quê? Eu te desafio para um duelo. Deixe-me lembrá-lo, Sr. Arnin, sou uma cavaleira não uma prostituta.
Katie explicou pacientemente ao oponente atordoado. Os cavaleiros ao redor suspiraram, depois explodiram em gargalhadas.
— Ficou louca! Uma cavaleira da sua patente desafiando um veterano?!
— Deixa. Talvez quebrando o nariz dela dessa vez aprenda a lição.
Em meio às zombarias, Katie pegou silenciosamente uma espada de treinamento de madeira.
A hierarquia social no Império era extremamente rígida. E isso se aplicava igualmente às patentes dos cavaleiros.
Havia um abismo entre os aprendizes, juniores, intermediários e veteranos. Não apenas o tratamento era drasticamente diferente, mas a disparidade em suas habilidades também era imensa.
Especialmente os veteranos, habilidosos o suficiente para ingressar na Guarda Imperial, protegendo e servindo diretamente a família real. Não um mero oponente que um intermediário ousaria desafiar.
Sim. Era assim que deveria ser. Para um da patente de Katie, desafiar um veterano deveria terminar em uma derrota humilhante, tão miserável que a pessoa se envergonharia só por tentar.
— M-mas… o que foi iss—
Mas algo inesperado aconteceu. Os veteranos estavam boquiabertos, fitando o centro do campo de treino. No meio do círculo formado pelos observadores, Katie jogava de lado os destroços de uma espada de madeira.
— V-você viu aquilo?
— Você está falando do momento em que Katie esmagou o crânio de Arnin? Se for, sim, vi claramente.
— Eu nem consegui acompanhar a velocidade! E mais importante, como é possível? A espada se despedaçou!
A espada de madeira que Katie havia usado se partiu com um estalo agudo. Não apenas quebrado, mas estilhaçou em fragmentos, espalhando farpas como farelos de biscoito.
Quanto poder ela tinha colocado naquele golpe? Foi como o impacto de uma bomba. Por um instante, houve genuína preocupação de que Arnin que desmoronou com os olhos firmemente fechados, pudesse realmente estar morto.
Katie sacudiu a mão com uma expressão satisfeita. Estilhaços de madeira caíram no chão.
‘Eu devia ter desafiado ele para esse duelo muito antes.’
Até então, ela havia aguentado o tratamento injusto com medo de causar confusão e ser expulsa. Também não queria chamar atenção. Um cavaleiro excepcional inevitavelmente atraía olhares e para uma espiã, nada era mais perigoso.
Mas, refletindo melhor, não havia motivo real para temer atenção. Tornar-se uma cavaleira veterana lhe daria acesso a mais informações. Talvez fosse melhor ser promovida rapidamente e se tornar guarda pessoal de Damian.
— Por que estão todos parados aí? Sou tão divertida assim?
Katie gritou, impaciente, enquanto erguia o inconsciente Arnin, não nos braços, mas pelo colarinho, como se fosse um saco.
Honestamente, queria deixá-lo ali e ir embora, mas isso não seria um tratamento adequado para um oponente com quem cruzou espadas. Katie era uma cavaleira que, embora um pouco rude, entendia o dever. Arrastando Arnin, aproximou-se do grupo.
— Saiam caminho.
— Hã? Ah— sim, claro.
Os cavaleiros veteranos que zombavam momentos antes estremeceram e rapidamente abriram passagem. Katie marchou, as pernas moles de Arnin arrastando deixavam trilhas na terra atrás dela.
— A Katie sempre foi tão forte assim?
— Hmm, não sei. Ela sempre foi diligente nos treinos… Agora que penso nisso, vencia bastante nos combates.
Katie riu por dentro ao ouvir os cochichos. Se tivesse lutado a sério, não teria vencido “bastante”, venceria sempre. Ela se continha para evitar chamar atenção.
Espiões do Reino infiltravam o palácio antes dos dez anos, treinados em disfarce e assassinato desde cedo.
Katie fora a melhor de sua classe. Com sua força física natural e talento excepcional, formou-se antes dos veteranos e infiltrou-se no Império antes mesmo de atingir a maioridade.
Nenhum humano comum poderia esperar igualar-se a ela, até mesmo outros beastkins tinham dificuldades. A derrota de Arnin era certa no momento em que ela aceitou o duelo.
Então, de repente, um calafrio percorreu sua espinha.
Katie parou e olhou para cima.
Um homem repousava na janela dos alojamentos dos cavaleiros, observando-a.
Um homem inclinado na janela do alojamento dos cavaleiros, sobre o campo de treinamento, a observa.
Cabelos negros despenteados, um sorriso languido. Olhos semicerrados que a fitavam lá de cima.
Para qualquer um observador, ele pareceria bêbado, sua postura era relaxada. Mas seus olhos eram afiados como lâminas.
Pupilas douradas que pareciam atravessar a alma. No instante em que encarou aquele olhar, o corpo de Katie congelou, como se correntes invisíveis a prendessem.
Os lábios do homem se moveram, murmurando uma única palavra, com a língua estalando suavemente entre os dentes:
— Gatinha.
Katie saiu finalmente de seu transe e baixou a cabeça.
‘Gatinha?’
Era um apelido ridículo algo que se daria a um animal de estimação. Se fosse uma pessoa comum, poderia pensar que ele apenas a estava provocando. Mas Katie tinha segredos demais para levar aquilo de forma leviana.
‘… Será que ele descobriu?’
Seu coração batia desconfortavelmente no peito. Ela estudou o rosto de Helion cuidadosamente, mas não havia nada particularmente suspeito em sua expressão. Logo, chegou a uma conclusão.
‘Não. Impossível. Se tivesse descoberto algo, não estaria ali parado, tão tranquilo.’
Rangendo os dentes, continuou arrastando Arnin. Primeiro, Helion tinha visto a cor de seus olhos. Agora… teria descoberto seu nome também?
Seriam os hormônios turbulentos de seu cio se aproximando, fazendo seu peito agitar-se com inquietação? O incômodo crescia, impossibilitando ignorar a sensação de que algo estava prestes a mudar.
Continua…
Tradução Elisa Erzet