O Gatinho que Chora Todas as Noites - Capítulo 03
No instante em que aquele aroma se aproximou, Damian recuou, tropeçando. Ela não se virou, mas soube apenas pelo som dos passos. Damian estava com medo. Claro que sim. Era um babaca que não sabia fazer nada além de importunar mulheres.
Aquilo também era culpa de Helion. Ele era tão forte quanto o Leão Dourado, o grande governante do Reino.
Sobreviver significava ser forte. E ser forte significava conseguir sobreviver novamente.
As palavras que havia dito a ele eram verdadeiras, e haviam se tornado realidade. Aquele menino havia crescido e se tornado um homem tão poderoso que ninguém jamais ousaria ameaçá-lo novamente.
Sua simples presença, seu cheiro persistente, talvez até mesmo sua existência… já eram o suficiente para despertar medo nos outros.
— Foi um sono agradável, pela primeira vez em muito tempo, mas sua encenação trivial me acordou. Como pretende pagar por isso?
Helion falou suavemente, mas, em contraste com o tom gentil, suas palavras eram duras.
— I-isso não… Me desculpe, irmão. Já estou indo, para que você possa voltar a dormir.
Damian se desculpou antes mesmo de ser mandado embora e girou nos calcanhares. Abandonando a mulher que acabara de assediar, disparou em direção à porta.
‘Droga! Seu maldito bastardo. Me leva com você também!’
Katie espiou por cima do ombro, com a cabeça baixa. Em seu campo de visão estreito, viu Damian fugindo sozinho. Mas sua vista logo foi bloqueada por algo negro como breu.
No instante em que percebeu que era o tecido da calça de Helion, envolvendo suas coxas musculosas, Katie virou rapidamente o rosto e abaixou ainda mais a cabeça, tentando esconder o rosto.
— Nunca te vi antes.
Era verdade. Fez de tudo para evitar ser notada por ele.
Ela era uma espiã do Reino e Helion conhecia seu rosto. Mesmo que fosse o rosto juvenil de uma criança de oito anos, muito diferente de sua aparência atual, não podia correr riscos.
Se ele percebesse algo estranho e descobrisse que ela era uma espiã, tudo estaria perdido.
— É natural. Sou apenas uma cavaleira de baixa parente. Fui designada para o Palácio do Amanhecer do Príncipe Damian, então nunca precisei ir ao seu Palácio do Crepúsculo.
— Faz sentido. Não posso conhecer o rosto de todos os cavaleiros. Muito menos dos de patente mais baixa.
Diferente dos cavaleiros de alto escalão, que serviam diretamente como escolta da família imperial, os de patente média raramente se encontravam com os membros da realeza, e, quando o faziam, era de longe, durante cerimônias públicas.
— Mas me diga… por que você não olha para mim?
Katie, que havia suspirado aliviada por achar que havia escapado da crise, congelou com suas palavras.
— Por que está se curvado assim? Parece que está escondendo algo.
Helion se encostou despreocupadamente no suporte de armas. Katie, evitou seus olhos dourados que agora a fitavam de lado.
— Não é isso… Estou apenas envergonhada por fazê-lo presenciar uma cena tão indigna de uma cavaleira.
— Ah… Então está dizendo que agiu daquela maneira, mesmo sabendo o quão vergonhoso era?
— Eu não participei do assédio do Príncipe Damian!
— Mas também não pareceu se esforçar para afastá-lo.
— Disse a ele várias vezes para se afastar.
— Geralmente, quando só se usa palavras, chamamos isso de “fazer charme”.
Por que esse homem, cuja presença já era tão ameaçadora, também precisava ser tão bom em argumentos?
Katie cerrou os dentes. A vergonha real agora começava a surgir. Mas perder a calma seria exatamente o que ele queria. Helion claramente tentava irritá-la para forçá-la a levantar o rosto.
— … Peço desculpas.
Em vez de explodir, Katie escolheu recuar. Não queria pedir desculpas àquele traidor mesquinho, que retribuíra sua bondade com hostilidade, mas às vezes é preciso dar um passo para trás para avançar dois.
Ao ouvir sua desculpa pronta, o homem pareceu perder o interesse e endireitou-se lentamente.
— Bom. Pode ir agora.
Ela esperava que ele insistisse em ver seu rosto, mas ele desistiu surpreendentemente rápido.
É claro. Por que um membro da família imperial se importaria com o rosto de uma simples cavaleira?
Provavelmente teve apenas um momento de curiosidade ao vê-la envolvida numa cena com o irmão e concluiu que não valia a pena perder tempo com isso.
Katie, ainda com a cabeça baixa, fez uma reverência rápida e virou, prestes a correr como Damian havia feito.
Mas, no instante seguinte, sentiu o pulso ser agarrado, e seu corpo foi virado num instante.
— Hã!
Suas costas bateram em um estande de armas. O impacto fez várias espadas caírem com um estrondo.
Suas costas bateram contra um suporte de armas. Com o impacto, várias espadas caíram ao chão, tilintando. Instintivamente, Katie virou o rosto, mas um antebraço forte envolveu sua cintura. Ele a puxou contra si e segurou seu queixo com firmeza.
Os olhares se cruzaram.
Por um breve instante, um brilho estranho cintilou naqueles olhos dourados, tão límpidos quanto perturbadores, e então se dissipou.
— Ah…
Um suspiro carregado de emoções escapou dos lábios do homem. Katie ficou imóvel, incapaz até de respirar.
Helion era, sem dúvida, um humano. Não era um feral como eles, nem um animal. Mas, em sua respiração, ela sentiu o cheiro espesso de um predador.
Aqueles olhos, a respiração, pertenciam a uma fera que havia encontrado sua presa.
O instinto animal em seu sangue gritou em alerta.
— O-o que está fazendo?! Me solte!
Ela bateu em sua mão e se desvencilhou do abraço. Os lábios de Helion se abriram como se fosse dizer algo, mas ela não estava disposta a ouvir.
‘Ele vai descobrir. Se eu continuar assim, ele vai perceber a verdade.’
Um instinto inexplicável a alertava: precisava fugir. Agora.
Com uma velocidade inimaginável para uma cavaleira de patente baixa, Katie disparou para fora dali. Não teve sequer a presença de espírito para lembrar que acabara de empurrar um membro da realeza. Simplesmente correu, como se algo a perseguisse.
Dentro do Depósito, onde ela havia desaparecido, Helion permaneceu imóvel, encarando a porta por onde a mulher sumiu.
— Inacreditavelmente rápida.
Um suspiro escapou dele, como se estivesse genuinamente impressionado. Já sabia que ela não havia consentido no assédio de Damian. Mesmo dormindo, seus ouvidos permaneciam atentos.
“Afaste-se.” — Exatamente três vezes. Foi esse o número de avisos que ela deu.
Mesmo assim, apesar das investidas insistentes do bastardo, ela não ousou empurrar um membro da família imperial. Mas no momento em que Helion tentou ver seu rosto, ela o golpeou com força, o rosto pálido de terror, e fugiu sem olhar para trás.
Seu olhar se voltou para o espaço vazio onde seu rosto estivera segundos antes.
Foi mera curiosidade. Como seria o rosto da mulher que chamou a atenção daquele idiota do Damian?
Esperava algo comum. Cabelos pretos, mal cortados. Um uniforme grande demais para ela. Aquele aspecto desgrenhado só reforçava sua suposição.
Pensando bem, sempre foi assim. Tudo em que Damian se interessava, arte, talento, pessoas, acabava sendo decepcionante.
Mas desta vez foi diferente.
Helion passou a língua pelos lábios secos.
— … Que visão, não?
Um rosto tão pequeno, mas com traços incrivelmente marcantes. Sob a franja desalinhada, como se escondesse o rosto, havia uma pele pálida e perfeita como leite fresco.
Um nariz elegantemente alto. E, como único toque de cor naquele rosto quase monocromático, lábios intensamente vermelhos.
Tudo era harmonioso. Mas o que realmente o havia capturado, sem sombra de dúvida, eram os olhos.
Íris cinza, uma raridade mesmo no Império, presente em apenas 1% da população. Olhos nebulosos e úmidos, como tinta diluída em água.
E o modo como ela o encarou, arregalada de medo… havia algo tão obsceno naquele olhar que fez Helion entender imediatamente por que Damian havia agido como um animal.
Em resumo, era um rosto capaz de enlouquecer um homem de desejo.
Helion pressionou a palma da mão contra o tecido tenso da calça. Mas nem mesmo isso escondia o volume da sua ereção.
Com o cessar-fogo da guerra, há 3 anos, Helion enviou espiões ao Reino.
“Encontrem a gata branca.”
Aquela menina foi a primeira pessoa que o fez lutar por sua vida. Ela o salvou e lhe deu um propósito.
Durante a guerra, o garoto sobreviveu pensando nela. Lutou como um condenado, só para provar.
Helion, que até então apenas existia, sem realmente viver, atravessou a longa guerra se agarrando à memória dela. Lutou com todas as forças, desesperado para mostrar a menina:
“A criança que você salvou se tornou um homem forte.”
Mas a notícia trazida pelos espiões foi devastadora.
“Dizem que ela morreu. Pega no fogo cruzado durante a guerra…”
Não era incomum que inocentes morressem assim. Mas por que ela? Justo ela?
Ele tinha certeza de que estava viva. Mesmo criança, havia sido corajosa o bastante para enganar um cavaleiro imperial.
A evidência trazida era incontestável, um registro oficial de óbito do Reino.
A partir daquele momento, o mundo de Helion perdeu toda a cor.
Nenhuma iguaria trazia sabor. Nada mais lhe proporcionava prazer.
A saudade dos vivos passa com o tempo. A dos mortos… dura para sempre.
Continua…
Tradução Elisa Erzet