O Gatinho que Chora Todas as Noites - Capítulo 01
Essa é uma história de quando Katie ainda era muito pequena.
Sua mãe sempre dizia:
“Jamais acolha uma fera de cabelos negros. Humanos são uma raça que não conhece gratidão, então nunca os ajude, não importa o que aconteça.”
Katie assentia com a cabeça, dizendo que entendia. Mas, na verdade, aquelas palavras ainda não faziam sentido para ela.
Pelo menos, não até o dia em que conheceu um certo menino.
Era uma noite como qualquer outra, exceto por um detalhe. As ruas estavam intensamente iluminadas, reluzindo por todos os cantos.
Já haviam se passado centenas de anos desde a fundação do Reino de Chandra, onde Katie vivia. Durante todo esse tempo, o Império Aesoleum havia desdenhosamente chamado o Reino de Chandra de “Terra das Feras”.
Mas, pela primeira vez na história, o Império enviou um emissário ao Reino.
E para receber um devoto do Deus Sol Solaris, para quem a luz era sagrada, as ruas foram decoradas com incontáveis luzes, brilhando como se o próprio sol tivesse descido à Terra.
No entanto, esses assuntos de adultos não passavam de confusões incompreensíveis para Katie.
Ela tinha apenas oito anos. Era jovem demais para compreender a relação entre o Império e o Reino, ou a importância de um emissário.
“Katie, não vá muito longe hoje. Volte cedo.”
Diante do lembrete preocupado da mãe, a menina esboçou um sorriso radiante.
“Tudo bem, mamãe. Não se preocupe.”
Desde que o pai havia sido chamado ao palácio, a ansiedade da mãe parecia crescer a cada dia.
Era uma antiga tradição do Reino, uma forma velada de manter controle, obrigando os chefes das tribos independentes a enviarem seus entes queridos à corte. Uma estratégia para unificar sob um só governo aqueles que sempre foram livres.
A mãe às vezes chamava a tradição de “situação de reféns”. Mas Katie pensava diferente.
Aqueles que entravam no palácio viviam cercados de luxo, desfrutando de uma vida esplêndida. De maneira semelhante ao próprio grande governante.
Por isso, aquilo era bom para o Reino, para esses “reféns” e para o povo, que podia desfrutar da paz sob um reino unificado.
Estar separada do pai era doloroso, sim, mas era um sacrifício necessário pelo bem da nação.
TAP, TAP, TAP.
Com os passos ágeis de um gato, Katie correu pelo topo de um muro. O toque de recolher logo entraria em vigor. Ela precisava terminar seu passeio noturno antes disso, então se movia rapidamente.
Justamente quando perambulava livremente pelas ruas e vielas iluminadas, deleitando-se com sua liberdade, um som estranho chegou aos seus ouvidos, vindo das profundezas de um beco isolado que raramente visitava.
As orelhas pontudas de Katie, levantou por entre seus cabelos prateados, se moveram em alerta. As crianças da raça feral nasciam em forma humana, mas com orelhas e cauda visíveis. Essas características podiam ser escondidas com o tempo, mas Katie ainda não era boa nisso.
“P-Perdão, Alteza, Príncipe Herdeiro!”
‘Príncipe Herdeiro? Quer dizer… o filho do Imperador, vindo do Império?’
Sem perceber, Katie se viu caminhando em direção à voz. E então, paralisou diante da cena chocante à sua frente.
Um menino que parecia ter sua idade estava caído no chão. Sobre ele, com uma espada erguida, estava um homem corpulento que só podia ser um cavaleiro.
Crianças são muitas vezes imprudentes, mas essa imprudência também pode ser coragem. Elas ainda não conhecem o mundo o suficiente para temer muitas coisas.
Katie imediatamente se jogou contra o homem armado. Felizmente, ele estava tão concentrado no menino à sua frente que nem percebeu a ameaça vinda por trás.
Atacar um inimigo desprevenido era fácil. Ela cravou suas garras afiadas no ombro do homem e mordeu seu pescoço.
“Seu monstro! Atacando uma criança indefesa?!”
Mesmo com sua idade, ela sabia distinguir certo do errado. E atormentar os fracos era claramente errado.
“Aaaaagh!”
Suas garras e presas ainda eram pequenas, mesmo assim continuavam sendo de uma fera. Mais do que suficientes para rasgar a carne humana e causar dor.
O homem gritou, se debatendo com violência, mas Katie se agarrou ao seu ombro e não soltou.
“Mas que diabos?!”
Não durou muito. O homem esticou o braço, agarrou Katie pelos cabelos e a arremessou contra o chão.
No entanto, verdadeiramente nenhum gato fica caído no chão quando é jogado.
Katie com maestria girou no ar e aterrissou perfeitamente sobre os pés. Soltando um grito estridente.
“RAWWW!”
Sua mãe sempre dizia:
“Se estiver em perigo, grite o mais alto que puder.”
Felizmente, a tática funcionou. O homem visivelmente hesitou, olhando em volta. Aproveitando o momento, Katie agarrou a mão do menino.
“CORRA!”
Katie confiava mais em sua velocidade do que em qualquer outra coisa. Ela pegou o menino menor que ela, debaixo do braço e pulou para o topo do muro.
Despistar o homem foi fácil. Corpos humanos eram lentos e pesados. Capturar um pequeno felino correndo por becos estreitos, saltando muros, era quase impossível.
Só quando teve certeza absoluta de que estavam a salvo, Katie parou. Massageando o ombro dolorido, colocou o menino no chão.
‘Eu sou mesmo uma ótima garota! Salvei alguém em perigo! A mamãe com certeza me elogiaria se soubesse.’
Toda orgulhosa, levantou a cabeça, já esperando ouvir palavras de gratidão do menino. Mas o que veio não foi um “obrigado” nem um pedido de desculpas.
Foi ressentimento.
“Por que você me ajudou?”
“… O quê?”
Katie piscou, completamente confusa.
“Você deveria ter me deixado morrer. Teria sido melhor para todos.”
“Que absurdo é esse, depois que me esforcei para te salvar?
“Mesmo que eu sobreviva hoje, vou morrer logo de qualquer jeito.”
A voz do menino era assustadoramente calma para alguém falando sobre morte. Tão sem vida que, por um instante, Katie pensou que ele já fosse um fantasma.
Seu peito doeu. Ela cerrou os punhos, com força.
“Como você pode saber disso? Minha mãe sempre me diz — sobreviver significa que você é forte. E neste mundo onde os fortes devoram os fracos, ser forte significa continuar vivo.”
Ao ouvir isso, os olhos do menino se arregalaram. Só então Katie realmente os encarou. As íris dele brilhavam em um dourado intenso como se o próprio sol tivesse sido prensado dentro delas.
Os lábios do menino se abriram, como se ele fosse dizer algo, mas, ao mesmo tempo, vozes distantes começaram a chamar por ele
“Alteza!”
“Onde você está?!”
Katie se sobressaltou, o corpo enrijecendo.
Só então se deu conta, aquele menino era o Príncipe Herdeiro do Império.
O Império era infame por desprezar os ferais do Reino. Havia até rumores terríveis de que capturavam apenas para torturá-los por diversão.
“E-eu… é melhor eu ir!”
Katie se virou rapidamente. Viu o menino estendendo a mão em sua direção, mas não havia tempo para hesitar. Desapareceu na escuridão de um beco distante, como uma sombra na noite.
Ao chegar em casa, Katie contou com entusiasmo cada detalhe daquela noite à sua mãe, com orgulho brilhando nos olhos.
Mas, em vez dos elogios que esperava, a mãe apenas soltou um suspiro angustiado e, logo depois, uma bronca severa.
“Meu Deus, Katie… Eu não te disse? Nunca acolha uma fera de cabelos negros.”
A verdade por trás dessas palavras logo veio à tona. A delegação imperial retornou ao Império e declarou guerra.
O Primeiro Príncipe, que havia sido enviado com a proposta de uma aliança, teria, supostamente, sofrido uma tentativa de assassinato.
O Império declarou que aquele ataque representava uma declaração de guerra contra eles.
Mas Katie sabia a verdade.
Quem havia levantado a espada contra o príncipe foi um cavaleiro imperial e quem o salvara da morte era ela.
A vida que salvou retornou para ela como ruína: uma aliança quase selada foi desfeita, e a guerra começou.
Era injusto, mas não havia chance de explicar.
“Katie, — disse a mãe, com os olhos baixos. Às vezes, uma mentira tem mais poder do que a verdade.”
A mãe implorou, repetidas vezes, que Katie jamais contasse a ninguém sobre o que aconteceu naquela noite.
E assim, a guerra começou.
Katie odiou o menino que escondeu a verdade e permaneceu em silêncio. Enquanto vizinhos eram arrastados para o campo de batalha e retornavam como cadáveres, seu ressentimento por ele crescia mais feroz.
Quando, finalmente, chegou a notícia de que o Primeiro Príncipe havia massacrado centenas do povo do Reino e foi proclamado herói de guerra pelo Império, Katie pensou:
‘A criança que salvei pagou gentileza com hostilidade.’
Ela havia devolvido a vida dele e, em troca, o garoto ergueu a espada contra o seu povo.
E assim, os eventos daquela noite se tornaram um pesadelo conhecido apenas por Katie e sua mãe.
(Notinha para não se confundirem: é assim que faço nas minhas traduções
→ diálogos de acontecimentos passados ⟨“”⟩ Duas aspas
→ pensamentos do personagem ⟨‘ ’⟩ aspas simples
→ diálogos atuais ⟨—⟩) travessão
Continua….
Tradução: Elisa Erzet